Lição do dever ou do devir poético

Noite Dia
O escritor é um vadio que erra entre as terras da grandeza alheia e ama o que não lhe pertence – pois o seu instinto de verdade é feito da lama do mais puro terrorismo: não há palavras que o desatinem e o segreguem no vão entusiasmo das massas, não há frouxo canto que romantize, diante de seus olhos demasiadamente opacos, aquilo que de efêmero se desprende da realidade bruta do ser. E aqui se consiste sensivelmente ao meu compreender uma das mais translúcidas lições quanto a toda arte, não somente ao ofício literário: a perfeição dos recursos e mesmo o teor da seletividade são assuntos muito mais humanos do que técnicos. Há de se ter carne, subsistência, ímpeto no pensamento – para que tudo o que nele exista de mais verdadeiro se expresse da melhor maneira possível. O papel transfigurador é apenas uma antiga missão de exegetas, mártires e santos. Talvez o escritor seja como o irmão profano de todas estas figuras; o bêbado que pode acusar, numa efusão apoteótica do riso, todos os brilhos sem valor.
Pensei hoje, ao levar das idéias, que aquilo que mais importa é o que mais se desconhece; no entanto, não se pode cogitar o mundo diante da catástrofe dessa ignorância absurda, não há aqui, no altar de tal paroxismo da mais profunda antífrase existencial, um arredor, um organismo vascular semelhante ao original, qualquer raiz continuadora de sua ambígua existência: o que mais importa está muito além de todas as nossas mais acirradas e minuciosas importâncias; logo o digo e me assalta um vislumbre de Abraão prestes ao sacrifício do filho. Quando imagino a quais supostos níveis a expressão humana universalmente deveria se associar, é bem a este: o de uma profundíssima comunhão com o mistério da Criação, e, mais ainda quanto à intensidade e relevância da narrativa sobrehumana em nossos pensamentos – uma recordação incessante do Calvário.
Não existe habilidade sem personalidade; não há excelência sem a capacidade de enxergar a excelência. A vida não se perpetua sem uma natureza com todas as suas singularidades e contradições – violentamente levadas às últimas consequências, pois a cegueira é oportuna ou inconvenientemente conclusiva.
Posso imaginar que o mundo inteiro esteja em conflito por idéias e que os movimentos das reflexões humanas são tão imperecíveis quanto a articulação das motivações. E quando falo, portanto, de terrorismo entre asseverações de arte ou bíblicas, é pelo seguinte: foram idéias humanas que muitas vezes moveram as guerras, foram ideologias que incentivaram os mecanismos práticos das maiores atrocidades da história, foram parágrafos como os do texto aqui que circularam através das gerações, como demônios sussurrantes no coração dos mais fracos, dos perversos, dos grandiloquentes e farsantes. O que me leva à síntese: há mais sangue e morte nas mãos dos poetas do que nas mãos dos piores genocidas. Quem nunca terá ouvido a seguinte frase: “As palavras têm poder”?
Pois bem: pense neste poder como uma bomba – você o controla, ou ele é capaz de te destruir, e destruir tudo ao seu redor, pela obscura culpa da tua corrupção e insensatez?
Entender a linguagem é entender a realidade, talvez o contrário se aplique sem maiores danos de causa. Suponho o que diriam, se pudessem dizer, todas as vítimas dilaceradas do comunismo, todos os mortos frios num gulag.

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