30.03.2023
Dedicado à Patrícia Teixeira,
minha mãe; escrito no espaço instável de uma espera pela melhora de seu quadro clínico. Em memória à vastidão de reflexões solitárias proporcionadas pelas doenças, e principalmente pela sua santa, digna e milagrosa vontade de viver. Entre nós se entrelaça o cordão inefável e mais profundo de toda a existência: as nossas almas constituem um riso de Deus – quem sabe um santuário celestial de toda a Sua paz e amor: o qual sempre me rendeu sorvos enormes nas fontes da sabedoria.
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“Feita a expiação do santuário, da Tenda da Reunião e do altar, fará aproximar o bode ainda vivo. Aarão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode e confessará sobre ele todas as faltas dos israelitas, todas as suas transgressões e todos os seus pecados. E depois de tê-los assim posto sobre a cabeça do bode, enviá-lo-á ao deserto, conduzido por um homem preparado para isso, e o bode levará sobre si todas as faltas deles para uma região desolada.” (Levítico)
“As palavras mais silenciosas são as que trazem a tempestade, pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo.” (Nietzsche)
É contra a Natureza toda tendência recaída no obscuro da perdição e na cegueira dos instintos. Não é habitual ao homem desejar o pior – porém a grande fantasia universal a qual chamamos “sociedade” estabelece, mesmo legalmente, todo o estatuto filosófico da doença, erguendo, no altar soberano da degeneração mórbida, os representantes mais mordazes daquilo que, no homem, séculos de desvarios e de embriaguez idealista alçaram como a máxima e grandiloquente virtude: a própria e pura mentira; a própria teoria de todo o caos que rasteja e assombra o coração do mundo: a crise é uma luta entre fantoches, a uma platéia minuciosamente entorpecida pelas luzes fantásticas de um permanente teatro – no entanto, um monstro da podridão insinua, com uma flébil harmônica sussurrante, que a lucidez não é mais do que o equilíbrio perfeito entre os pensamentos de um terrorista e as atitudes de um santo – afinal: força é toda a obstinação milagrosa da lucidez, algo como uma catedral entre exércitos, ou uma missa entoada entre explosivos. A lucidez é um salmo entre a destruição, harpa dócil e plangente capaz de tanger todos os mistérios da existência humana – quem tenha ouvidos para ouvir, que ouça: que ouça no ribombo dos canhões e na algaravia treda dos senados, das câmaras, dos congressos – em toda a sinergia histriônica incendiária da “ordem”: aquela realidade maior, aquela nudez de critérios estúpidos, aquele louco despojo do preconceito da idéia: aquele Deus que rege a mais breve vírgula do Cosmos inteiro; perante o qual o homem fugiu continuamente, sob os afagos masoquistas do Estado, do discurso, da servidão patológica, da morte voluntária e inconsequente proporcionada pela turba dos hedonismos brilhantes. Qual homem persistirá quando amordaçou, estrangulou, mentiu para si e destruiu a si mesmo? Qual mão de comando, num estalar fúnebre de dedos, não será apocalipticamente mais poderosa do que todas as mentes que se renderam à brevidade sistêmica do caos? O pensamento é um veneno que submerge toda a alma no mais aterrador recanto do Inferno. Quantos não decidiram crucificar-se numa falsa tortura – numa vida falsa – e sofrer as dores de parto de um mero aborto casual? – eis os escravos; eis os submissos: eis os fracos.
Qual o segredo da minha força? Decerto que a cada um cabe a razão áurea que Deus acende e perpetua no coração de cada homem – quantos enxergam isto?, – no entanto, creio que o mais simples dos conceitos, a mais destilada e sóbria idéia, a mais sanguinária e visível genealogia da destruição e da criação, abastecem com um ímpeto inflexível a ação de qualquer um, tal lei geral da vida, medula óssea da Natureza: a medida da nossa vulnerabilidade é dada pelo esquecimento de Deus. Mesmo em leituras superficiais das Escrituras ou nas entrelinhas de qualquer surata alcorânica, o homem destina-se ao caminho da destruição quando declara a sua revolta contra Deus – a sociedade é martirizada, as grandes abominações são lançadas ao fogo e anjos exterminadores se encarregam de intervir na história do mundo, empunhando as angélicas espadas das leis divinas. Quanto a isto noto sempre uma ligeira esquiva, uma certa monomania de taberneiro irresponsável, um “Deus é amor” como se o nosso amor não pudesse ser cobrado, como se a nossa abjeta pusilanimidade fosse o bastante para que o próprio castigo e a própria idéia de uma retaliação, se tornassem dispensáveis e as nações por si mesmas trariam à terra dos hospícios a etérea Jerusalém rediviva… gratuitamente.
A força que tenho? A vontade de que necessito? A trilha para a qual fui feito e moldado? O puro, petulante e vulcânico metal que borbulha no meu âmago e atira injúrias pestilentas de crueldade atômica às “normas”, aos “preceitos”, à “decência”, ao “ideal”, à “ideologia” – é até demasiado simples: não há sociedade; não há laços políticos; não há retórica melíflua ou cartilha desprezível; não há uma “Constituição” para quem – naturalmente! – decide abraçar e amar o seu próprio destino. Isto é: aqueles que veem a morte antes como uma vitória do que uma trágica banalidade. Ser derrotado, agir como um derrotado, significa não assumir, rejeitar, ignorar justamente toda a grandiosidade que Deus estende como um tapete nos atos da vida – sobre o qual, à semelhança de pérfidos hereges, de saunos imundos e pigmeus rançosos, dispomos a procissão interminável do medo, da submissão doentia, da automutilação egoísta e vacilante, do culto à obscuridão inerme… E como os monstros que somos, no templo cósmico de Deus erigimos também todo o estatuário diabólico do “Estado”, da “grande imprensa”, da “democracia”, em suma: somos os mestres artísticos do grande delírio ufano, do sistema, da cibernética das ambiguidades…
Força é ter dentro de si todo o horror da crueldade humana cristalizado em virtude. É lutar numa guerra em que todos lutam – de uma maneira que ninguém mais luta.
Que vejam aqueles que podem ver: basta um passo, um abrir e fechar de olhos, basta um movimento – e já não seremos como antes; e todo o caminho foi desfeito, e todas as folhagens foram transubstanciadas…
Penetraremos longamente na alma eterna e loquaz da Perdição: seremos os metafísicos, os abutres, os roedores cientes de toda a devastação – porém o nosso pranto será como um canto de misericórdia: toda dor devotada à verdade, ao sofrimento real, à única filosofia existente: ao sangue derramado de Jesus Cristo…
O Calvário, pairando acima das preferências, imortalizando a luz do sacrifício tal uma estrela redentora sobre os interesses; a grande coroa indestrutível, vergando toda a ordem subjacente do mundo: desferindo os seus espinhos mortais na carne da idolatria…
Um homem que nega o Calvário é um verme doente: isto é a causa imediata das catástrofes, principalmente da doença – a doença não é exatamente um vestígio de imperfeição? Confrontá-la não é sempre compreendido como o ato mais nobre, filho da vontade mais dura? Pois bem – neste sentido todos somos doentes. E quantos não cultuam a doença? Hoje, a sociedade fundamenta-se nesta hipocrisia: desde a epiderme às vísceras – as multidões se tornaram um labirinto de leprosos.
Não preciso de nada; não quero nada; não exijo coisa alguma: Deus é o meu Senhor e Nele confio. Não me importa tampouco o lugar do meu pensamento, as condições, as emoções envolvidas. Quantas condolências foram prestadas antes que as ordens para que dois aviões abatessem o World Trade Center se emitissem? Ao Estado eu dirijo a mesma sinfonia macabra e bela de tão grande indiferença: é a mesma indiferença que me torna mortalmente contrário às fantasias históricas – vai-se ver e num instante nos assalta a falácia de todos os que dançam ao nosso redor! As suas vidas medíocres… O infantilismo… O gigantismo crônico da imaturidade… A anemia de convicções…
O caos avassalador ao qual estendemos a asa de uma dolorosa piedade, muitas vezes carcomidos pelo mesmo câncer de quem amamos. Somos os saudosos, somos os que ecoam em Babel os cânticos tristes de Sião…
Força! – eis toda a força possível!… toda a força que por direito nos é devida: saber desprezar a mais sutil mentira; explodir em toda a ópera das minúcias o artefato homicida de uma violência santa. – Eu mesmo não me considero um escritor, não aspiro a tal ofício: sou um bufão do Apocalipse; um malabarista a brincar com balas-de-canhão. Eis a minha vocação, a minha inflexibilidade natural: Deus acima de todas as coisas… A realidade da realidade… O fato dentre os fatos… O destino entre todos os destinos…
– Igor Rivellino