A chave da consciência; ou: uma pequena nota intuitiva

Noite Dia

Sou o ser menos adequado possível para dizer ou desdizer qualquer hipótese, teoria, sistema ou fulguração que seja. Mas é o habitual de uma individualidade, mesmo nos níveis biológicos mais elementares, desejar a autopreservação em algum sentido, ou ao menos a sua existência contínua de maneira a originar um bem possível não somente a si mesma, mas à sociedade comum da qual participa ou se identifica. Acredito que, quanto àquilo que se refere propriamente ao homem, e num sentido mais vasto e lato ao motor imutável da realidade – o Deus, o Verbo, a Palavra, a Revelação, – deveria subsistir, minimamente que fosse, uma certa intuição psicológica, até mesmo existencial eu diria – sem querer recair em filosofias ou chavões, pois sou filósofo apenas de botequim, – de “se abrir o coração à vastidão divina da realidade”. Não – isto não é um esoterismo incendiário qualquer; não quero promover, no espírito dos meus leitores, uma vontade expedicionária; vejo que, “por aí”, o espírito de seita se dissemina como uma patologia grave e sutil, que ataca, principalmente, quem espera ser imunizado de alguma maneira. Porém, eu quase cogito adotar aqui não a tintura sacerdotal de uma exortação, impoluta e sacrossanta, a despontar em meio ao jardim da moralidade como um sol direcionador e inconteste – no entretanto, penso em fazer uma súplica; e ainda menos, creiam-me, no aspecto de exigir algo. Se a modéstia me permite tamanha ruptura da crisálida reclusa da minha soberba, eu gostaria, caro leitor, de iluminar alguns conceitos… 

Na involuntária démarche da vida, nos deparamos sempre com as questões que acabam se entregando ao gosto público. Submersos na tumultuosa tribuna de inúmeras idéias, discussões, correntes, moralidades, religiões, seitas, ou seja lá o que for, imediatamente, com o tempo, vamos aderindo, ainda que superficialmente, a alguns elementos destas coisas todas. Admitimos a certa idade tal ou qual religião, tal ou qual preceito, tal ou qual evidência que, supostamente, nos indica o necessário caminho à verdade, ou serve ao menos para o estabelecimento de uma opinião que seja, com a qual possamos brilhar por aí, como se fizéssemos uso de um distintivo cintilante qualquer, que nos diferencia das demais pessoas ou nos reitera a nós mesmos. Se é que, convenhamos, seja sempre perfeitamente assim… Se é que, numa ebriedade histriônica de instintos excitados, não vamos comprar uma efetiva contenda pelas ruas, não vamos “morrer em nome do que acreditamos” numa fila de supermercado, ao defender as virtudes de um candidato eleitoral em detrimento dos defeitos de um outro. Parece, à primeira vista, é claro, evidentemente heróico que sejamos crucificados na própria cruz que decidimos carregar, e que em nome da verdade sangremos, lutuosos, no máximo martírio ao alcance da Cristandade santa e honrada. Talvez sequer pensemos na família que passará a noite investigando o nosso desaparecimento, sonâmbula, e no dia seguinte verá no televisor da sala a notícia da morte de seu arrimo e protetor. Causa: amor – ou seria idolatria? – à Opinião. 

Não digo que um ser humano não esteja imbuído, não seja até mesmo espiritualmente condicionado, pelos efeitos e causas supostas da Opinião. Ela talvez seja a bússola suprema, inquebrantável, ainda que da vesânia e do pandemônio mental. Precisamos de um conforto psicológico nutritivo, de um campo de sustento à nossa autoimagem que fatorialize apropriadamente a sua figura de forma mais ou menos íntegra e coesa. No entanto, ao invés de buscar uma unificação tal, uma propriedade tal, uma solidez pessoal tal, antes numa conversa interior e íntima com Deus do que numa algazarra barulhenta e puramente exteriorizada de emoções dispersas e infinitamente variadas, e infinitamente autocontradizentes e contrastantes, antes buscasse – e digo aqui, de fato: antes buscasse o brasileiro – se unir, contemplar, se absorver pela infinitude e eternidade de Deus, do que ser moldado, engolido, cuspido, manejado pelo vaivém não tanto das ventilações policromáticas do Sistema (vamos chamar aqui de Sistema tudo aquilo que, por um poder maior, induz o homem sistematicamente à autodestruição), mas também pela variedade interna desequilibrada das suas próprias impressões efêmeras, pensamentos momentâneos, atitudes posicionais súbitas e despersonalizadas. E não digo sequer de Deus, apesar de que, mais do que tudo, gostaria de fazer um apelo à beleza e verdade do Eterno. Também farei aqui, em vista dos ateus, descrentes, agnósticos, ou de toda qualquer outra crença, sistema, posição, atitude, existência que eu honestamente venha a desconhecer ou não saber como enumerar, um apelo que talvez seja muito mais próximo, concreto, substantivo de fato dentro do escopo do círculo de latência humano. É bem simples: será que o prazer de opinar, de criticar, de julgar, de se posicionar, de afirmar, de negar, de desmantelar, de apedrejar, de cuspir, de condenar, de acusar, de categorizar, se tornou (e aqui valeriam bem mais do que outros mil verbos possíveis) tão maior do que o instinto de se abrir à realidade fantástica daquele céu noturno, que se assoma à vista da Humanidade, cheio de rutilâncias e mistérios, carregado pela magnificência suntuosa da Criação?… Será que os homens não observam mais uma árvore que seja, não páram diante do vicejar rumoroso das folhas, das nuances cromáticas possíveis entre todo o tronco, as raízes e a copa espalhafatosa e rica?… Será que o simples caminhar, o ver, o respirar, o compreender, o observar, o contemplar, o querer, o amar as coisas tais como elas são, será que tudo isso se tornou subitamente impossível?… O abrir-se à existência, o fato de se abrir o coração a tudo o que não entendemos, a tudo o que sabemos e não sabemos, a tudo o que está nas mãos de Deus e que ainda não alcançamos vislumbrar, mas que vemos que existe, vemos que está ali, à nossa espera, dentro da mesma Realidade da qual participamos, da qual somos filhos, na qual somos, vivemos e existimos… Parece-me que a ausência, o sufocamento de tal liberdade de espírito, é muito anterior à ausência de qualquer outra liberdade, no sentido mais eminentemente jurídico, estatal, social. É como se as pessoas, hoje, estivessem refletindo a tendência tirana que acusam no eleitorado, ou na política de outros países. O anseio de possuir matéria para afirmar e negar, para se prostrar torpemente diante de um ídolo salvador e encontrar, aos seus pés, conforto e idoneidade: de louvar uma imagem transitória no sólio olímpico da fatídica Opinião e, com isto, trucidar espontânea e gratuitamente o próximo. Há quem, após o ato, proclame celebremente: “Jesus disse para amar o próximo”. E por mais abstrato que tal fenômeno singular da hodierna sociologia possa nos parecer, acredito piamente que qualquer cidadão um pouco sensato tenha o seu repertório de exemplos particulares. Agora, o tratado essencial entre a atitude da contemplação universal e o da sacralização da Opinião é, ao meu ver, também muito simples: ao se interiorizar no coração de um homem a inconcebível realeza e magnitude da Obra, ele deveria, ao menos, comparar os seus ímpetos mais frequentes, e até mesmo os mais discretos, com este verdadeiro “abismo” da existência humana, que vai da eternidade que antecede a embriologia à eternidade que se perpetua após o estabelecimento contínuo do estatuário geral dos sarcófagos. Imaginem a luminescência, o purpúreo arcangelical belíssimo, que não irão revestir a nossa Opinião no post mortem! 

Evito dizer por mim mesmo, mas há um fato que sempre me impressionou, que é a estatística atual dos divórcios, do quanto eles sempre me pareceram demasiado frequentes e do quanto de espanto tive ao longo dos anos, meditando na minha adolescência o que levava os adultos a uma separação, muitas vezes ao assassinato concomitante, ao ciúme psicótico, à destruição violentíssima, prenunciadora de uma verdadeira esteira de hecatombes estrondosas na sociedade. Algo disso não terá a ver com a mancha obscura de autoprovações inúteis a qual o homem seguidamente se impôs? A este fato de que a sede pelo posicionalismo canino e abstruso parece, hoje, ser muito maior do que a sede pela vida em si? E que assim, portanto, é muito mais típico, é muito mais fácil, é muito mais rápido, ser antes um assassino que esfaqueia a própria esposa na frente dos filhos, do que um cumpridor daqueles desígnios que, perante a Eternidade, não compreenderíamos de outra feita como desígnios também eternos? Não vejo mais, em qualquer relação humana que seja, atualmente, uma mera incompatibilidade possível de gênios, ou de temperamento, ou de convenções culturais – parece que hoje o verdadeiro problema é uma incompatibilidade interior e existencial, que já nos torna não somente canibais assanhados, mas autofágicos crônicos, que sob a pressão de sucessivos delírios egolátricos e depressivos, lançamos ao outro, por consequência, o cuspe putrescente, envenenado, oriundo do pântano nocivo a transbordar em nosso âmago febril e repleto de rachaduras vulcânicas. Não estamos somente perdidos quanto ao próximo, mas quanto a nós mesmos. Na maior singeleza possível de termos, eu enunciaria, aqui, um “deslocamento existencial” generalizado. Algo que divide o homem não de outro homem: mas o divide em si, e o aniquila em si mesmo. 

Ah, creia-me o leitor: a crença pode definir todo o homem, mas o homem não se define pela crença. Há muitos que acusam o Sistema – mas falam como o Sistema, julgam como o Sistema, são como o Sistema. O que, decerto, incandesce ao bom entendimento que há algo ali, que totaliza o labirinto de todas as complexidades, que lhe dá ao mesmo tempo a forma obscura e a chave solucionadora, que existe um “mundo oculto” por detrás do mundo aparente, muito maior do que os nossos vãos olhos poderiam suspeitar de um dia para o outro. Eu diria até, e vejo que a minha súplica a pouco e pouco vai quase se tornando um pequeno manifesto, eu diria que ao escrever este texto há um princípio unificador que me permite teclar cada letra e dispor, nas frases, as palavras e sentidos respectivos; que, se o coração do homem cultuar apenas a multiplicidade, o permanente engano, a feroz ilusão treda do sentimentalismo, então tudo o que há é mera sabotagem – especificamente autosabotagem, pois sem uma unidade total ideal, um equilíbrio almejável, uma perfeição que nos transcende e que nos motiva, seremos, ao menos psicologicamente, em tudo iguais às miríades de partículas revoltas, que se dispersam pelo mundo, aqui e ali, sofrendo apenas o incômodo único das leis naturais. 

Por vezes, a loucura é como uma sonata da bestialidade – ingênua e luciferina, misericordiosa e odienta. Testemunhamos, atualmente, a lágrima perpétua dos esmagados, e os rios de sangue que se desatinam nas veias de uma sociedade indiferente, e que banham de vivacidade o rosto transtornado dos políticos e seus mórbidos sequazes. O homem, frente ao milagre de tudo, escolheu o morticínio. E é assim que, eventualmente, as mais infinitesimais coisas ascenderam à esfera de uma suprassuma obsessão doentia – e tudo aquilo que estava acima, tudo aquilo que elevava o homem, tudo aquilo que fazia do homem um homem, desceu ao ergástulo genérico de uma abstração intangibilíssima, distante, impossível, horrenda… 

Numa alusão superficialíssima do nosso estado de coisas, é como se a posição formal valesse enormemente mais do que a atitude pessoal. Oras, numa sociedade de bacharéis e especialistas, é impossível suspeitar que as coisas funcionem assim. É impossível afirmar que a emoção retórica é mais honesta do que a possibilidade da veracidade de fato. 

Lembrem-se: não vos faço nada além de uma súplica. Não peço nada, por mais que o homem tenha fechado brutalmente os seus olhos a toda a vastidão que o cerca… E tenha entregado, junto à cegueira característica, o próprio coração às mãos sanguinolentas do Diabo. Não deixo nada aqui, além de uma descrição honesta e, no mais fundo das motivações, vulgar e típica – pois não há nostálgico, patriota, triste, indignado ou colérico que não tenha se deparado com complicações tais… Que não veja, no contubérnio humano, alguma carta caída da mesa, algum ponteiro desalinhado de seu fulcro… Alguma alteração peculiar de todo o quadro de uma família. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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