Anamnese

Noite Dia

Ela acordou.

A cada tremular dos olhos uma nova centelha de horror brilhava em sua alma: uma vastidão escura a cercava e uma asfixia mórbida pesava sobre todo o seu ser. “Meu Deus, onde estou?…”

“Não clame por Deus” – respondeu-lhe uma voz terrível e insuportavelmente arranhada.

Súbito, ela se levanta dentre a camada de fuligem espessa que a recobria, tossindo e expectorando febrilmente, o peito em pânico. “Quem é?”, pergunta, com a voz sôfrega e embargada. “O seu Destino, querida.” E de repente, num crescendo maligno, um vermelho lânguido e brutal começou a emergir tal uma fosforescência característica da natureza obscura que a envolvia, e no entreato entre a surpresa e a revelação, descobriu o rosto descarnado e a figura alta e escura que tão sombriamente falava… “Não, não, não… Só pode ser um pesadelo!”, grunhiu, baixo, a infeliz. A forma terrífica que marmoreamente a observava bradou-lhe de volta, a gargalhar temivelmente – “Pode ter certeza que isso é bem mais do que um pesadelo!” E continuou a rir, rir, rir…

A figura insinuou com um gesto de sua mão esquelética para que a moça a seguisse. Passaram por um estreito corredor, porém longo, entremeado de ruínas indecifráveis. A peculiar atmosfera vermelha rutilava sobre o que pareciam ser ossos desconjuntados, e ossos que não eram apenas de meros homens… Cartilagens indescritíveis e formas desconhecidas aos milhares se uniam num verdadeiro labirinto de segredos ignóbeis… Até que, enfim, aquela fatal vereda se alargou no que parecia ser uma grande cripta, que fora, antes, violentamente carbonizada por dentro; a figura – da qual se via apenas a manta negra e gasta e as putrefações de um rosto medonho e das mãos destruídas – se posicionou logo atrás de uma mediana arca no centro daquele salão do horror. “Abra”, e apontou para o curioso e maligno objeto… “Mas por quê? Onde estou eu?” – “Abra”: foi a única resposta intemerata daquele ser…

E ela, indecisa, choramingando de terror e incompreensão, titubeou até o pé da arca, evitando encarar aquele monstro onipresente… Pôs as palmas sobre a tampa, e com a fraqueza e determinação do medo, aos poucos, foi empurrando o véu singular daquele formidável segredo… “O que será, meu Deus?”, pensava. A cada pouco que movia uma réstia de outro tom de luminosidade sobressaía das entranhas do objeto, e forçando a tampa mais e mais, se admirava com as extraordinárias esferas que ali se escondiam e brilhavam, e mais apareciam, de muitos tamanhos diferentes, quanto mais empurrava a tampa daquele magnífico tesouro… “Mas o quê? São tão belas… E esse lugar é tão horrível!”

“São as tuas lembranças”, respondeu sonoramente o monstro.

“Mas como irei diferenciá-las? Não posso ver nada além da luz…”

“Aquela maior ali… É de quando conheceu o teu amante.”

A mulher, admirada com aquelas esferas, olhou para a esfera grande que o monstro indicava. “Pegue-a, se quiser reviver tudo”.

“Ah, tudo?”

“Sim.”

“De fato, é a melhor lembrança que eu tenho…”

E ergueu-se, com um esforço, para colher nas mãos aquela esfera de energia; e, ao tocá-la, sentiu um choque abrupto e uma evasão total dos sentidos, como se fosse transportada de si…

Viu tudo em cinza… Caía afora, batendo nas janelas, uma forte e lúgubre chuva, com trovões fortes e profundos, que assombram qualquer alma. Uma mão grande e poderosa se levantou, segurando um copo de… absinto. E na mesma mão despontava, entre os dedos, a fumaça densa de um cigarro. “Eu sinto tudo, vejo cada pensamento… Mas não foi isso que eu vivi!” Porém o desespero da moça era mudo: ela estava em outra pessoa, e melhor fosse antes o insigne amante, mas não… Não era o amante.

Caíam, sucessivamente, no copo do absinto, pesadas lágrimas de sofrimento, iguais a mundos inteiros de esperanças que se despedaçavam… Na orquestra dos trovões, o carrilhão de um relógio antigo soava, rasgando o luto do tempo: meia-noite. O que parecia, ao fundo, ser Wagner, preenchia, como um corpo-de-baile medonho, a dança atroz de todos aqueles elementos confusos. “Ah… Um novo dia? Não… A minha vida já não tem mais auroras!” E aquele grande homem, assim falando, chorou mais sobre o absinto, e bebeu, entre baforadas ébrias de fumaça, o siamês trágico do vício mortal e do seu próprio pranto… “Não!!”, gritava, inutilmente, a moça, vítima da totalidade de todas aquelas impressões insanas. “Não!!”.

O homem, chorando e vomitando vocábulos ignotos, entre espasmos de loucura, pegou de uma caneta e assim grafou num papel qualquer: “Àquela que mais amo, a prova da minha vida…”

A risada maquiavélica do monstro a acordou de súbito. Ela estava estirada no chão, e se levantou em pânico: “Você mentiu!”

“Não… você mentiu…”

Um frio anêmico agarrou-lhe toda a carne da face… “Sim, eu menti… Mas isto não deve passar de um pesadelo! De uma brincadeira!”

“Não, não é. Prossiga.” – E o monstro apontou para dentro da arca.

“Nunca! O que eu ganho com isso?”

“A redenção dos seus pecados.”

“Ah… Então você é um anjo? Você é Deus?”

“Não. Eu sou o seu Destino.”

“E qual é o meu Destino?”

“Algo melhor.”

“Por acaso estou no Inferno?”

“Não. Mas se não quiser provar do mal que fez, estará correta na sua suposição.”

“Então aqui é o Purgatório?”

“Digamos que sim, se é assim que, na linguagem do mundo, os homens se expressam…”

A mulher olhou, novamente, para o fundo da arca, indecisa…

“Eu preciso, então, passar pela prova?”

“Sim, precisa; ou as coisas serão mais do que mil vezes piores para você.”

“Oh, Deus…”

No intento de se salvar de tudo aquilo, acenou para a menor esfera que viu, e indagou ao monstro:

“O que é?”

Mas a criatura não respondeu. E durante três vezes seguidas de suplicantes indagações, a criatura se contentou apenas a um eterno olhar hermético e vigilante…

Tremendo, a moça colheu a menor das esferas, e teve o rompante. Uma memória de meros segundos: ela mesma se viu a gritar, indiferentemente, com um celular em mãos, para que alguém calasse a maldita boca. Pequenos dedos tristes se fecharam na haste de um chocalho. Um bracinho rotundo jogou longe um alegre e fofo leão de pelúcia. E tudo o que aquele pequeno ser não chorou em grito, se desanuviou dentro, em algum compartimento inato da alma, que talvez se desmanchasse, assim, em cinzas por todo o sempre. Sua cabeça pendia, cabisbaixa.

“Não, eu não suporto mais.” Ela proclamou, desolada e com o rosto mergulhado em pranto.

“Prefere suportar o Inferno?”

“E se você estiver mentindo, monstro?!”

“Eu posso te mostrar toda a verdade, se assim desejar.”

E a moça, derruída pela promessa de um pior tormento do que os tormentos da arca fatal, ia assim, de esfera em esfera, de lembrança em lembrança, de sofrimento em sofrimento, suportando tudo, compreendendo tudo, enxergando tudo. E talvez tenham sido milhares de vezes, milhares de milhares, ou milhões de milhões… Quem saberá?

Ao término daquele ciclo, infinitamente superior aos desafios de um Hércules, a moça, destruída, ensandecida ou santificada, pedia indefinidamente e às escâncaras íntimos perdões arrebatados; e suplicava incessantemente à criatura que a tirasse dali.

“Pois bem… E o que tem a me dizer?”

“Dizer o que, ó misericórdia?!”

“Sobre o que viu.”

“Eu vi quem eu sou… Ah… E mesmo os sofrimentos pequenos… Parecem tão grandes quanto os grandes!”

“Sofrimento não é tempo, sofrimento é eternidade.”

E assim falando, o monstro ressoou uma funda gargalhada… E estendendo os longos braços ao lado do corpo perfilado, apresentou, obscenamente, um par de asas preto e imenso atirado a súbito.

“Pensas que é assim?! Pensas que é tão fácil assim?! Pensas que chorar e gritar por misericórdia irá te salvar?!” Rugia o demônio agora com uma voz violentamente bárbara, de fazer sangrar os ouvidos, pelo efeito do puro terror, aos mais cruéis e sanguinários homens…

“Não! Você disse que era a minha redenção!”, agonizou a mulher condenada.

O demônio brutalmente a agarra, fechando as mãos podres no seu pescoço. No teto da cripta, um esfacelamento contínuo desfaz as camadas sombrias de matéria, abrindo-lhe a uma vastidão de nuvens pesadas, trovões e inumeráveis gritos longínquos, numa verdadeira seara brutal do terror. Parecia uma guerra. O demônio levantou às alturas com a sua nova isca, que se contorcia aos gritos. “VEJA!” – estrondou a voz subanimalesca. “VEJA A SUA VERDADEIRA REDENÇÃO!” Oceanos infinitos de fogo atingiam os horizontes indizíveis da visão; metrópoles gigantescas ardiam em ruínas, e exércitos de homens e bestas indescritíveis se confundiam naquele caos supremo. “SE VOCÊ PENSAVA QUE AQUILO ERA RUIM, SAIBA QUE É SÓ O COMEÇO!”

E o monstro lançou a fatídica mulher ao suplício eterno das chamas infernais.

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